A (I)LEGALIDADE DA APLICAÇÃO DA TEORIA DA APARÊNCIA NO PROCESSO PENAL

28/03/2023

Por Jonathas Augusto Busanelli – OAB/SP 247.195 e
Maiara Tangerina – OAB/SP 368.673.

 

A questão que pretendemos tratar neste breve artigo não é nova, contudo, tomou uma amplitude maior (e ainda mais perigosa) com um recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, relativo a Operação Mata Norte.

O recurso em mandado de segurança 57.740/PE se encontra assim ementado, no qual se pode compreender basicamente do que se trata o caso e a insurgência da parte, notadamente na parte em que grifamos em destaque:

“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. BUSCA E APREENSÃO. OPERAÇÃO “MATA NORTE”. APURAÇÃO DE DESVIOS DE RECURSOS PÚBLICOS FEDERAIS PERTENCENTES AO PROGRAMA DE APOIO À ALIMENTAÇÃO ESCOLAR NA EDUCAÇÃO BÁSICA – PNAE E QUE FIZERAM PARTE DE CONTRATOS CELEBRADOS COM MUNICÍPIO NO ESTADO DE PERNAMBUCO. CONSENTIMENTO EXPRESSO DE FUNCIONÁRIA DE EMPRESA INVESTIGADA QUE CONSTARA COMO EX-SÓCIA EM CONTRATO SOCIAL, POSSUÍA A CHAVE DO IMÓVEL SEDE DA EMPRESA E SE APRESENTAVA COMO SUA REPRESENTANTE. VALIDADE. TEORIA DA APARÊNCIA. MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADO, AUTORIZANDO A BUSCA NO IMÓVEL SEDE DE EMPRESA INVESTIGADA. SUPOSTA APREENSÃO, NO LOCAL, DE DOCUMENTOS DE DUAS OUTRAS EMPRESAS CUJOS NOMES NÃO CONSTAVAM NO MANDADO JUDICIAL E QUE NÃO HAVIAM SIDO INDICADAS COMO ENVOLVIDAS NOS FATOS APURADOS, MAS QUE OCUPARIAM SALAS NO IMÓVEL SEDE DA EMPRESA INVESTIGADA. AUSÊNCIA DE PROVA. APREENSÃO QUE, ADEMAIS, CASO COMPROVADA LIGAÇÃO COM OS FATOS APURADOS, NÃO PADECERIA DE NULIDADE POR CORRESPONDER A DESCOBERTA FORTUITA. RECURSO DESPROVIDO.

  1. Situação em que, ao cumprir mandado de busca e apreensão na residência de pessoa física investigada ligada à empresa FJW EMPRESARIAL LTDA. – ME, contra a qual já havia mandado de busca expedido, a investigada informou que a sede da empresa se encontrava em local diverso do indicado e conduziu a autoridade policial ao local, abrindo a porta com sua chave, e fornecendo autorização por escrito para busca no local.

Entretanto, ao se deparar com sala trancada com fechadura eletrônica protegida por senha que somente o sócio administrador de fato da empresa detinha, a autoridade policial requereu e obteve nova ordem judicial, algumas horas depois de sua chegada ao imóvel, autorizando a realização de busca e apreensão em todos os espaços do imóvel em questão, no novo endereço, inclusive na referida sala.

  1. Conforme a jurisprudência assentada no Supremo Tribunal Federal, “o conceito de ‘casa’, para o fim da proteção jurídico-constitucional a que se refere o art. 5º, XI, da Lei Fundamental, reveste-se de caráter amplo (HC 82.788/RJ, Rel. Min.

CELSO DE MELLO, 2ª Turma do STF, julgado em 12/04/2005, DJe de 02/06/2006; RE 251.445/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO, decisão monocrática publicada no DJ de 03/08/2000), pois compreende, na abrangência de sua designação tutelar, (a) qualquer compartimento habitado, (b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva e (c) qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade” (RHC 90.376/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma do STF, julgado em 03/04/2007, DJe de 18/05/2007).

  1. A jurisprudência desta Corte, amparada em precedentes do Supremo Tribunal Federal, tem, reiteradamente, considerado válida a entrada de policiais em residências para realizar busca, mesmo sem mandado judicial, desde que haja fundada suspeita de situação de flagrante delito ou que haja a permissão do morador. Precedentes do STJ.
  2. É de se reconhecer como válida, com base na teoria da aparência, a autorização expressa de realização de busca e apreensão em sede de empresa investigada, dada por pessoa que, embora tenha deixado de ser sócia formal da empresa desde 2013, continuou assinando documentação para os supostos certames fraudulentos realizados por Município em 2014 e, mesmo transcorridos quase 3 (três) anos de sua exclusão como sócia, se apresentou como a pessoa responsável pela empresa justamente no dia em que deflagrada a “Operação Mata Norte”, tinha a chave do escritório sede da empresa e foi descrita pelo real sócio-administrador da empresa, em depoimento policial, como pessoa de sua inteira confiança, encarregada de manter a documentação em ordem para eventuais licitações de que a empresa viesse a participar, bem como emissões de notas fiscais.
  3. Reputa-se válida a autorização de ingresso em estabelecimento dada por empregados da empresa, em face da teoria da aparência que define a aparência de direito “como sendo uma situação de fato que manifesta como verdadeira uma situação jurídica não verdadeira, e que, por causa do erro escusável de quem, de boa-fé, tomou o fenômeno real como manifestação de uma situação jurídica verdadeira, cria um direito subjetivo novo, mesmo à custa da própria realidade (in Malheiros, Álvaro. Aparência de Direito. Publicado na Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos – vol. 1, p. 955 – 1006, Jun/2011 DTR\2012\1188. Disponível no endereço eletrônico https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3971672/mod_resource/cont ent/0/RTDoc%2002-08-2017%209_48%20%28AM%29.pdf). (RMS 50.633/RJ, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 09/10/2018, DJe 19/10/2018)
  4. Correta, também, e revestida de boa-fé a iniciativa da autoridade policial federal e do Ministério Público Federal de solicitar ordem judicial de busca e apreensão, para o prosseguimento da busca, quando, ao se deparar, durante busca previamente autorizada por aparente representante da empresa, com sala e gavetas trancadas, às quais não houve consentimento para revista. Não padece, assim, de ilegalidade a continuidade de busca efetuada em locais sem prévio acesso autorizado, quando a continuidade de tal busca se amparou em ordem judicial proferida por autoridade competente, devidamente fundamentada e concedida horas após a chegada da autoridade policial no local em que adentrara com consentimento válido de representante aparente da empresa investigada.
  5. “A jurisprudência desta Corte é firme no sentido da adoção da teoria do encontro fortuito ou casual de provas (serendipidade). Segundo essa teoria, independentemente da ocorrência da identidade de investigados ou réus, consideram-se válidas as provas encontradas casualmente pelos agentes da persecução penal, relativas à infração penal até então desconhecida, por ocasião do cumprimento de medidas de obtenção de prova de outro delito regularmente autorizadas, ainda que inexista conexão ou continência com o crime supervenientemente encontrado e este não cumpra os requisitos autorizadores da medida probatória, desde que não haja desvio de finalidade na execução do meio de obtenção de prova” (AgRg no REsp 1.752.564/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 17/11/2020, DJe 23/11/2020). Precedentes do STJ.
  6. Concedida ordem judicial devidamente fundamentada, autorizando a realização de busca e apreensão em todos os espaços de imóvel sede de empresa investigada, eventuais documentos de pessoas jurídicas até então não indicadas como suspeitas na investigação encontrados no mesmo imóvel que revelem ligação com os fatos apurados, devem ser consideradas descobertas fortuitas reconhecidas como válidas.
  7. Situação em que, ademais, o sócio administrador da empresa investigada admitiu, em depoimento prestado à Polícia Federal, que uma das empresas que pretensamente foram ilegalmente atingidas pela busca também é de sua propriedade (a empresa DTI SOLUÇÕES) e a outra (a JLPM CONSTRUÇÕES LTDA.) pertence a seu cunhado, informações que geram suspeita de possível envolvimento com as atividades ilegais da empresa investigada.

Também não há, nos autos, prova de que a empresa DTI SOLUÇÕES ocupasse qualquer das salas existentes no imóvel indicado como sede da empresa investigada ou de que documentos seus tivessem sido recolhidos durante a busca.

  1. Recurso ordinário a que se nega provimento.

(RMS 57.740/PE, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 23/03/2021, DJe 29/03/2021)

O caso deste julgado é interessantíssimo e, com o devido respeito, desafia inúmeras discussões jurídicas. A nosso sentir, ocorrera na hipótese várias violações e agressões ao devido processo legal, mas vamos nos ater aqui a análise da utilização da chamada “teoria da aparência” no âmbito do processo penal.

O cerne da discussão diz respeito à (in)validade da medida de busca e apreensão destacada do preenchimento dos requisitos legais previstos pelo ordenamento jurídico. De outra banda, há quem defenda a validade da providência, sob o argumento de aplicação da teoria da aparência que, em síntese, valida os efeitos jurídicos de uma situação jurídica não verdadeira, porém, aparentemente real.  

Antes deste julgado, a maioria dos poucos casos em que se verificou a aplicação do instituto da teoria da aparência no âmbito penal se referia a questões de ingresso em imóvel em situações de flagrante delito ou com autorização de moradores (ainda que não proprietários do imóvel).

Aqui, todavia, o caso apresenta as seguintes particularidades que merecem destaque e demonstram, a nosso sentir, o equívoco da decisão:

  1. O ingresso se deu em empresa que NÃO estava indicada no mandado e sequer era objeto de investigação;
  2. Os agentes policiais sabiam quem eram os gerentes da empresa (informações colhidas durante o inquérito) e assim, tinham ciência que a pessoa que detinha a chave da empresa NÃO era sua responsável;
  3. Não se tratava de flagrante delito.

Para melhor compreensão da dimensão das questões acima, convém aqui analisarmos, ainda que de forma sucinta, o próprio conceito de “teoria da aparência” e sua aplicação no direito. E, do próprio acordão do STJ vemos, com base nas lições do saudoso professor Vicente Ráo os requisitos ensejadores para a aplicação da teoria da aparência, são eles:

“São seus requisitos essenciais objetivos: a) uma situação de fato cercada de circunstâncias tais que manifestamente a apresentem como se fora uma situação de direito; b) situação de fato que assim possa ser considerada segundo a ordem geral e normal das coisas; c) e que, nas mesmas condições acima, apresente o titular aparente como se fora titular legítimo, ou o direito como se realmente existisse.

São seus requisitos subjetivos essenciais: a) a incidência em erro de quem, de boa-fé, a mencionada situação de fato como situação de direito considera; b) a escusabilidade desse erro apreciada segundo a situação pessoal de quem nele incorreu.

Como se vê, não é apenas a boa-fé que caracteriza a proteção dispensada à aparência de direito. Não é, tampouco, o erro escusável, tão somente. São esses dois requisitos subjetivos inseparavelmente conjugados com os objetivos referidos acima, – requisitos sem os quais ou sem algum dos quais a aparência não produz os efeitos que pelo ordenamento lhes são atribuídos.”

Observa-se, portanto, dentro da própria base doutrinária da decisão, não há como se sustentar a legalidade da busca realizada.

Ora, não havia situação de fato que atestasse uma situação de direito e tampouco se falar em boa-fé e erro escusável, já que é incontroverso nos autos conforme acima aludido que: i) a empresa objeto NÃO era objeto de investigação; ii) a polícia nas investigações anteriores sabia que a funcionária era apenas uma funcionária e iii) não se tratava de flagrante delito.

Isso já bastaria para atestarmos o equívoco do julgado, mas queremos crer ser necessário dar um passo a mais e discorrer brevemente sobre a impossibilidade de se aplicar a teoria da aparência no âmbito do processo penal.

E para tanto, convém demonstrar que os fundamentos da referida teoria visam, acima, de tudo uma regularidade no trato dos negócios privados.

Em percuciente texto a respeito do tema, Luiz Carlos da Cruz Iorio bem elucida os fundamentos da referida teoria nos seguintes termos:

“No entanto, a necessidade de ordem social de se conferir segurança às operações jurídicas, amparando-se, ao mesmo tempo, os interessados legítimos dos que corretamente procedem, impõe prevaleça à aparência do direito. A complexidade cada vez maior das relações jurídicas e das formas de vida dificulta o caminho para se chegar ao fundo das coisas e dos problemas condicionando-nos a acreditar na feição externa da realidade com a qual nos defrontamos. A rapidez e a segurança do comércio, a quantidade de negócios comuns quase impõe diariamente, os compromissos que se avolumam constantemente, o condicionamento da vida a uma dependência de relações contratuais inevitável, entre outros fatores, formam as causas que levam o homem a não dar tanta importância ao conteúdo dos atos que realiza, pretendendo-o ao aspecto exterior dos eventos que se apresentam.

O princípio da proteção aos terceiros de boa-fé e a necessidade de imprimir segurança às relações jurídicas justificam a aparência. Orlando Gomes aponta três razões principais, que servem, igualmente, de fundamento: 1 – para não criar surpresas à boa-fé nas transações do comércio jurídico; 2 – para não obrigar os terceiros a uma verificação preventiva da realidade do que evidencia a aparência; 3 – para não tornar mais lenta, fatigante e custosa a atividade jurídica. A boa-fé nos contratos, a lealdade nas relações sociais, à confiança que devem inspirar as declarações de vontade e os comportamentos exigem a proteção dos interesses jurisformizados em razão da crença em uma situação aparente, que tomam todos como verdadeira (Transformações Gerais do Direito das Obrigações, Ver. Dos Tribs. São Paulo, 1967, p.96).

Na vida dos negócios, não se pode imputar ao contratante a obrigação de reclamar a prova da qualidade da pessoa com a qual contrata. Não é costume impor-se a uma caixa de um estabelecimento comercial a exibição de seu contrato de trabalho, nem, em uma repartição pública, o ato de nomeação do funcionário que atende e assina um documento. Há uma grande quantidade de situações comuns com as quais convivemos diariamente e nos forçam a um comportamento de confiança e crença franca diante delas. Não duvidamos que um vendedor não esteja autorizado a acertar preços e entregar mercadorias. Estamos habituados a efetuar pagamentos a representantes de credores, advogados e mandatários, não nos preocupando, em examinar ou solicitar a autorização em receber. Em resumo, a vida nos coloca diante de eventos cotidianos que a necessidade determina a crença naquilo que os outros representam. Criar-se-ia um estado de coisas caótico, de verdadeiro tumulto, se, a cada passo, reclamarmos a comprovação da qualidade da pessoa com a qual nos relacionamos.” (g.n.)

A análise do autor citado é perfeita e em resumo consegue demonstrar que a teria da aparência emerge como uma forma de o Direito regular a mecânica das relações contratuais, mormente aplicáveis a transações com consumidores, sob pena de se exigir uma burocracia incompatível com as relações de mercado.

Logo se observa já de início que a teoria da aparência não tem qualquer base para ser aplicada no âmbito do processo penal, sob pena de evidente afronta ao devido processo legal, assegurado constitucionalmente.

Trazemos, aqui os ensinamentos de Aury Lopes Junior, para quem “Quando se lida com o processo penal, deve-se ter bem claro que, aqui, forma é garantia. Por se tratar de um ritual de exercício de poder e limitação de liberdade individual, a estrita observância das regras do jogo (devido processo penal) é fator legitimante de atuação estatal”.

E, ainda, o eminente professor destaca a impossibilidade de se importar conceitos próprios da responsabilidade processual civil para a esfera processual penal, ao destacar que “o erro da visão tradicional (pretensão punitiva de Binding) está em considerar que o objeto do processo é uma pretensão punitiva, pois isso significaria dizer que o Ministério Público atuaria, no processo penal, da mesma forma que um credor no processo civil.”

Desta forma, se admitir que um conceito próprio da regulação de mercado de consumo (responsabilidade pela teoria da aparência) seja utilizado no processo penal, em que forma é garantia de regularidade do processo que se busca uma punição, não faz qualquer sentido!

Mais do que isso, a se convalidar referida tese, se estará abrindo perigoso precedente no qual o efetivo suspeito e/ou investigado poderá, sem seu conhecimento e sem possibilidade de por si ou por seus defensores acompanhar a regularidade dos atos, ser objeto de buscas e apreensões e outras medidas.

Há que se compreender que o Juiz no processo penal tem como função precípua garantir os direitos do acusado de modo que a se possa chegar a uma eventual pena legítima. Os fins nunca justificam os meios. 

Enfim, nos parece que o entendimento do STJ no caso abre uma perigosa lacuna que pode gerar um efeito cascata de ações arbitrárias e ilegítimas. 

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